As mulheres negras ainda são as maiores vítimas de negligência, exploração e violência, no Brasil. A pesquisa  Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, de 2015, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), constatou que elas são 55,6 milhões, no país, e chefiam 41,1% das famílias negras e recebem, em média, 58,2% da renda das mulheres brancas.

Atlas da Violência 2019 fez um levantamento de 4.936 assassinatos de mulheres registrados em 2017, sendo que 66% das vítimas é negra. Na política, dados da campanha Mulheres Negras Decidem apontam que, em 2018, dos 513 parlamentares, apenas 10 eram mulheres negras.

Esses são apenas alguns dados que constatam a situação da mulher negra brasileira na sociedade brasileira, que se encontra em um estado de vulnerabilidade e insegurança, perante um cenário assustador de violência e regressão das políticas públicas voltadas para essas mulheres, no atual governo. Em um contexto em que vidas negras são cotidianamente ameaçadas, em que figuras como Marielle Franco são alvos de perseguição e assassinato, cuja solução é negligenciada pelo estado, faz-se necessário o ampliamento do debate e o fortalecimento das bases populares para lutar por seus direitos.

Para falar sobre o tema, convidamos Kíssia Wendy (assistente social e pesquisadora do PPGSS-UFPB) para falar sobre o racismo e a mulher negra no Brasil, com o artigo “A opressão racista e a subjugação feminina: pensando as mulheres negras no Brasil”, que você pode ler abaixo.

A opressão racista e a subjugação feminina: pensando as mulheres negras no Brasil

Por Kíssia Wendy

Qual a pertinência de se abordar a temática do racismo? Partimos da premissa de que os efeitos nefastos desse sistema de opressão e toda a lógica por ele perpetrada são fatores determinantes da sociabilidade brasileira, seja pelos aproximados quatro séculos em que a população negra foi escravizada neste país ou pelo modo que o capitalismo se apropriou dessa forma de dominação e subordinação para manter privilégios das elites ao longo dos anos.

A população negra tem, historicamente, sido atingida pela ação sistemática e cotidiana do racismo. Tendo seus direitos violados pela interface de várias formas de materialidade da opressão racialmente estabelecida. Assim sendo, intentamos apresentar alguns elementos que possam apreender o processo de construção do que venha a ser a experiência social do povo negro, como também desnudar, em alguma medida, as bases materiais que condicionam a sua existência e que destinam um lugar de desprestígio para este povo na dinâmica da sociedade brasileira. Atribuindo, desta maneira, a esta parcela da população, o status de desqualificada, perigosa e menos importante.

O racismo precisa ser concebido, neste sentido, enquanto um elemento estrutural e estruturante das relações sociais e da própria sociabilidade brasileira. Assim sendo, a população negra é afetada pelos processos de banalização da vida e por uma histórica inferiorização desta cor/raça/etnia no Brasil. O que está relacionado aos aspectos sociais, históricos, culturais, econômicos, políticos, educacionais, ou seja, da própria formação do imaginário social, de como isso ganha materialidade no cotidiano dos/as negros/as em sociedade e das condições de produção e reprodução deste segmento da população.

Durante o regime de escravização a população negra, cuja existência estava condicionada a de propriedade privada, era considerada como mais um “instrumento” de trabalho nas mãos dos senhores e das sinhás. Trabalhando até a exaustão ou até a morte em casos mais extremos, submetidos a castigos físicos, a um processo de expropriação cultural, deslegitimação e negação de direitos, os mais básicos, pretos e pretas eram objetificados e não tinham o domínio de seus corpos e vidas, costumes e práticas religiosas – Todavia, é preciso dizer que negros/as sempre resistiram e enfrentaram toda essa processualidade de profunda exploração.

Após a abolição da escravatura, ocorre uma inserção controversa da população negra na dinâmica da sociedade, aliada a supremacia branca europeia no mundo e a um processo de miscigenação, em que de forma estratégica são trazidos imigrantes europeus ao Brasil numa tentativa de embranquecimento da nação. Há, nesta direção, uma negação histórica da identidade negra e de seu lugar no mundo, sendo muito comum observarmos a figura da pessoa negra associada ao escravizado, “como se não tivessem um passado na África, como se não houvesse existido resistência” (RIBEIRO, 2018, p.8). Em outras palavras, podemos dizer que é muito usual a estigmatização do povo negro: aquele sem história, passivo, que parece ter aceitado a dominação sem nada fazer, com sua luta esquecida, sua cultura negativada, relegada “aos porões sombrios do pecado”, do errado, do condenável, do inaceitável.

Além do mais, a falácia de que neste país, notava-se a existência da mais profunda harmonia entre os grupos raciais distintos, tende a disseminar a falsa ideia de democracia racial que torna o racismo um fenômeno passível de tratamento apenas no campo da individualidade, sem o devido reconhecimento de que ele corresponde a uma base estrutural para o estabelecimento das relações sociais brasileiras e para o beneficiamento do sistema do capital que se complexifica constantemente e requer inovadas estratégias de valorização, utilizando-se, pois, do racismo como uma de suas ferramentas. “[…] Em suma: para se renovar, o capitalismo precisa, muitas vezes, renovar o racismo, como, por exemplo, substituir o racismo oficial e a segregação legalizada pela indiferença em face da igualdade racial sob o manto da democracia” (ALMEIDA, 2018, p.144).

Desta maneira, a opressão racial é disfarçada numa propagada, mas não real, aceitação e respeitabilidade entre as raças no Brasil. “Desconsiderando por completo que a marca registrada e asquerosa deste “intercâmbio” foi o estupro (e “esquecendo-se”, inclusive, da hipocrisia do celibato)” (SILVA, 2016, p. 118, parênteses do autor). E, mais uma vez, revelando a face destruidora e nefasta das práticas racistas que informam o imaginário e as condições objetivas da vida em sociedade.

Com o estabelecimento do modo de produção capitalista na sociedade brasileira, mais uma vez o racismo é acionado como um mecanismo de defesa dos interesses das elites instauradas no país. Como herança do legado da escravização, além da dinâmica desigual do capitalismo e da inserção periférica do Brasil na economia mundial, negros e negras são alvo de um processo permanente de subalternização social. É notório que a hierarquização racial é utilizada como mecanismo estratégico para a garantia de altos níveis de exploração e acumulação do capital, sendo que as mulheres negras estão localizadas na base da pirâmide no que toca à hierarquia socialmente estabelecida.

Aqui, o racismo torna-se manifesto nos mais diferentes contextos: pela via do genocídio da população negra, também pelo feminicídio, por intermédio da não representatividade de negros/as na mídia, nos espaços públicos e demais espaços de poder, na massiva presença destes nas camadas mais empobrecidas da população, nos altos índices de encarceramento e na ausência de políticas públicas que se adequem as suas reais necessidades, isso para abordar alguns aspectos. O que corresponde a um amplo sistema de dominação que se vale da discriminação racial para seu estabelecimento.

Não obstante a isso, cumpre observar que os processos de opressão/dominação/exploração racial e também contra as mulheres, resultam de uma construção socialmente estabelecida, os quais favorecem a dinâmica exploradora presente no modo de produção capitalista. Embora nem a exploração dos homens contra às mulheres e nem de brancos(as) em relação aos(as) negros(as) tenha a sua existência restrita a este modo de produção, são por ele apropriados como elementos que impulsionam e dão suporte ao desenvolvimento capitalista, ou seja, o racismo e também o patriarcado são essenciais para o funcionamento e a manutenção deste sistema.

Destarte, para o entendimento das opressões cumulativas que afetam diretamente a vida das mulheres negras e, assim, determinam em grande medida suas formas de subsistência, buscamos destacar os fatores: classe, raça e a categoria mulher como sendo elementos indissociáveis de opressão/exploração/dominação de suas vidas e que aludem a relações estruturais de poder.

Deste modo, configura-se uma necessidade analisar os elementos que afetam diretamente as formas de produção e reprodução da materialidade das mulheres negras, visto tratar-se de um fenômeno uno e ao mesmo tempo diverso. É preciso destacar que, o entendimento da particular experiência das mulheres negras no solo brasileiro, pressupõe uma análise  que não se esgote na categoria “classes sociais”, mas que a tome como uma das dimensões que possibilitam uma análise, que para além da aparência, seja capaz de apreender as mediações necessárias por meio da relação estreita, profunda e impossível de ser desfeita entre os elementos: classe, raça e a categoria mulher.

Nesta direção, convém dizer que o povo negro é visto na perspectiva da incapacidade para o manejo da lógica e para o desenvolvimento de atividades que não estejam relacionadas a aptidão física, numa pretensa infantilização e inferiorização deste povo no tempo, no espaço, no mundo. Trata-se de uma “[…] ideologia que, desde sempre, persegue e oprime negros e negras: a contraposição entre brancos e negros no que se refere às potencialidades de cada grupo e o papel social que podem cumprir” (SILVA, 2016, p. 169).

O corpo negro vai sendo moldado pela via do rebaixamento e da naturalização dos processos de violência sistêmica da qual são historicamente o alvo principal. De acordo com o Atlas da Violência (2019), entre os anos de 2000 e 2017 a taxa de mortes entre a população negra teve uma significativa elevação de 33,1%. Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros (definidos aqui como a soma de indivíduos pretos ou pardos, segundo a classificação do IBGE).

No que toca a categoria feminina torna-se evidente que: ao passo que a taxa de homicídios de mulheres não negras teve um crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a de mulheres negras cresceu 29,9%. Em números absolutos a diferença é ainda mais brutal, pois entre não negras o crescimento é de 1,7% e entre mulheres negras de 60,5%.

Em se tratando das estatísticas concernentes ao encarceramento temos que: “46,2% das pessoas privadas de liberdade no Brasil são de cor/etnia parda, seguido de 35,4% da população carcerária de cor/etnia branca e 17,3% de cor/etnia preta. Somados, pessoas presas de cor/etnia pretas e pardas totalizam 63,6% da população carcerária nacional” (INFOPEN, 2019, p. 31).

Estamos tratando, na verdade, de relações estruturadas socialmente pelo poder ou dominação de um grupo sobre o outro: negros sobre brancos, homens em relação às mulheres e as classes dominantes sobre as classes dominadas. Este debate, que parte da realidade concreta, precisa ser pensado dialeticamente, levando-se em consideração que todos esses elementos se entrecruzam e compõem a totalidade da vida social.

Ocorre que em função da relação de simbiose entre o patriarcado e o racismo no Brasil, as mulheres negras constituem o contingente populacional que sente com mais força o resultado das estratégias de sustentação das desigualdades sistêmicas. Nessa processualidade, torna-se notório que a sociedade é dividida em grupos distintos de acordo com interesses que prezam pela preservação de privilégios em relação ao sexo e a raça– o sexo masculino e a raça branca.

Diante dessa constatação, podemos observar a forma pela qual as imagens das mulheres negras têm sido construídas no território brasileiro, forjadas na subserviência, na força extrema, na invisibilidade, nos trabalhos mais precários, na objetificação de seus corpos, suas vidas e histórias. Para estas mulheres, as questões afetas à fragilidade, a necessidade de cuidados por ser mulher não formaram a realidade de suas experiências de vida, seja em relação a sua inserção nos espaços de luta feminista ou do movimento negro ou mesmo nos acontecimentos do cotidiano.

Podemos observar que, historicamente, foi exigida uma força descomunal por parte das negras, inclusive quando os seus filhos foram arrancados de seus braços e o cuidado destas mulheres precisaram ser transferidos para os filhos de mulheres brancas ou mesmo quando estas mulheres precisam relegar seus filhos, casa e família ao abandono para cuidar dos interesses das famílias para as quais trabalham. Ademais, “[…] historicamente, a mulher negra sempre esteve associada ao trabalho para a sua sobrevivência e a sobrevivência do grupo familiar” (BAIRROS, 2008, p.141).

E não obstante a isso, na contemporaneidade são as mulheres negras que prioritariamente exercem a função de empregadas domésticas e de cuidadoras dentro e fora de seus lares, seja pela profissionalização do cuidado ou pelo cuidado com familiares, em que pesa uma diferenciação racial e sexual, concomitantemente. Consoante o entendimento de Bairros (1995): “[…] uma mulher negra trabalhadora […] experimenta a opressão a partir de um lugar, que proporciona um ponto de vista diferente sobre o que é ser mulher numa sociedade desigual, racista e sexista” (p. 461).

Desta maneira, tratar de aspectos afetos à conexão entre negritude, sexismo e o debate de classes é denunciar a dura e desigual realidade brasileira, que destina às mulheres negras a vivência de um tríplice processo de opressão/exploração/dominação. Assim, “Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão” (GONZALES, 1982, p.97).

É preciso reafirmar, contudo, que toda essa realidade de negação, dominação e exploração sobre a vida das mulheres negras, não se constitui como uma característica que se coloca como fim último da história, uma vez que ao longo dos tempos essa parte da população foi construindo espaços de luta e de resistência, em vistas de obter melhores condições de vida ou mesmo garantir sua subsistência.

A superação da hierarquização racial e todos os efeitos nefastos do racismo, passa pelo crivo da necessária estruturação de modos de sociabilidade que se mostram incompatíveis com a lógica do modo de produção vigente. A luta antirracista, precisa ser também uma luta anticapitalista, antisexista, antilgbtfóbica. Ela requer uma oposição ferrenha a todos os sistemas de opressão/dominação/exploração evidenciados nos modos de produção e reprodução material da vida.

Precisamos trazer ao centro do debate as seguintes questões: a) as dimensões social e racial precisam ser consideradas do ponto de vista de seu imbricamento no que tange a formação social e histórica da sociedade brasileira, portanto o racismo além de uma categoria de análise, consiste num fator determinante da forma de experiência social da população negra, marcada pela subserviência, pela opressão, pela exploração; b) A interconexão do racismo com o patriarcalismo, coloca às mulheres negras no espaço social de aprofundamento da subalternização, por interferir direta e contundentemente na forma de vida e existência destas mulheres, sobretudo em uma nação forjada na exploração e dominação assentadas na subjugação feminina; c) embora no imaginário social possa existir a ideia de que a população negra tenha a capacidade intelectiva limitada, ou que tenha maior propensão a cometer crimes, ou ainda, que seja uma população de postura passiva num extremo ou agressiva num outro extremo, há de se ressaltar que negros/as sempre construíram histórias de resistência aos sistemas de opressão.

Desse modo, entendemos que a defesa intransigente de uma sociedade emancipada do racismo, das imposições patriarcais, das desigualdades sociais e demais sistemas de opressão, precisa ser construída por uma luta coletiva, cuja organização esteja pautada na solidariedade. O processo reflexivo, portanto, não pode ser dissociado de uma luta que tenha por horizonte a construção de proposições resolutivas que, além de promover o atendimento das necessidades mais urgentes que envolvem a disponibilização de meios de subsistência mais básicos e também mais complexos, possam atentar, sobretudo, para a construção de mudanças estruturais que tomem os problemas em sua raíz e vislumbrem as alterações substanciais.

Sobre a autora

Kíssia Wendy é mulher, negra, feminista, assistente social e pesquisadora sobre a condição da produção e reprodução da mulher negra na sociedade e sociabilidade do Brasil.  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba.

Assistentes sociais no combate ao racismo

As/os assistentes sociais têm o papel ético-político de combater o racismo em seu cotidiano profissional e, para dar visibilidade a isso, o Conjunto CFESS-CRESS convoca as/os assistentes sociais brasileiros/as a construir a campanha Assistentes Sociais no Combate ao Racismo, enviando relatos de experiências profissionais que contribuem nessa luta diária de ampliar direitos dos/as usuários/as. Acesse servicosocialcontraracismo.com.br/combate-cotidiano e participe!

O CRESS/PB irá realizar a Mesa de Diálogo: “Se cortam direitos, quem é preta e pobre sofre primeiro: assistentes sociais no combate ao racismo”, no dia 20/11, às 16h, na Praça da Alegria da UFPB. Contamos com a participação de toda a categoria para fortalecer o debate e pensar conjuntamente em ações de combate ao racismo. Clique aqui e confira a programação completa.

Mariana Costa – JP/PB 3569

Assessoria de Comunicação

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