No dia 29 de agosto, comemora-se o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. E, em meio a uma conjuntura de retrocessos e proliferação de discursos de ódio, faz-se necessário um debate constante sobre a vida e direitos dessas mulheres. O Serviço Social, nesse contexto, vem como um importante instrumento para se combater o preconceito e o desrespeito contra mulheres lésbicas, dentro de espaço sócio-ocupacionais e no ambiente doméstico da população usuária.

“Assistentes sociais trabalham cotidianamente nos mais diversos espaços sócio-ocupacionais com a população LGBT e com as expressões da discriminação. Portanto, devem desenvolver mecanismos para enfrentar qualquer impedimento no acesso aos direitos, bem como para processar mudanças no padrão sociocultural heteronormativo que segrega e promove violência contra este segmento da população.” CFESS Manifesta: Dia Nacional da Visibilidade Lésbica

 

 

Nesta data tão importante, o CRESS/PB convidou Luana Farias de Oliveira para falar sobre o assunto, para que entendamos mais sobre as estatísticas e a história de lutas das mulheres lésbicas.

Lésbicas Visíveis por Outra Sociedade

Em 1979, apenas trinta e nove anos atrás, 25 mulheres lésbicas reuniram-se para escrever um artigo sobre lesbianidade no Lampião da Esquina, jornal de temática homossexual formado apenas por homens gays, com circulação entre 1978 e 1981, no Rio de Janeiro. Segundo a própria matéria, esta foi a primeira vez que mulheres se reuniram para falar e escrever acerca da sua homossexualidade e que esta foi tratada sem teor patologizante ou criminológico. “É a primeira vez, sim senhora. Pode procurar em toda a sua memória, pode consultar o que e a quem quiser”, dizem no decorrer do texto. No início da matéria, elas justificam o atraso:

Apesar de, durante muito tempo, termos adiado o desejo de encontrar algumas mulheres para conversar sobre nós; apesar do nosso medo, receio de nos expor. Há pesar de nossa ausência num veículo de discussão, de debate e de circulação de ideias de uma questão sempre restrita às páginas policiais – ou, quando tratada “seriamente”, sempre etiquetada de secundária. (…) Nós estamos chegando atrasadas no Lampião. Mas nós estamos atrasadas porque os valores garantidos pelos esquemas repressivos têm conseguido um desempenho eficaz. (Jornal Lampião Da Esquina, 1979; grifo nosso)

Capa da edição de nº 12 do jornal Lampião Da Esquina, com título “Amor entre mulheres (elas dizem onde, quando, como e porquê)”

 

Após a experiência de escrever para o jornal, criou-se em outubro do mesmo ano o grupo Lésbico-Feminista (LF), primeira auto-organização de lésbicas do Brasil. Dezessete anos depois, em 29 de agosto de 1996, acontecia o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE) – hoje chamado Seminário Nacional de Mulheres Lésbicas e Bissexuais (Senalesbi). Em 2003, durante a quinta edição do evento, a data foi lançada como o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, luta histórica do movimento.

Sim, mas… Por que um Dia Nacional da Visibilidade Lésbica?

 

A invisibilidade não é desconhecida por nós mulheres. No mundo do homem branco, rico, heterossexual e cisgênero, somos historicamente invisibilizadas como seres sociais que também constroem a vida, a política, o conhecimento – embora em condições bastante desiguais comparadas a eles. Entretanto, nós mulheres não somos um grupo homogêneo e nem vivenciamos a invisibilidade da mesma forma, pois além de sermos mulheres também temos cor, classe social, identidade de gênero, orientação sexual… O que implica que as nossas vivências, em uma sociedade não só machista como estruturalmente racista, heterossexista e classista, serão desiguais entre nós mesmas. Assim como as relações sociais são estruturadas pelo patriarcado, racismo e capitalismo imbricados, fundidos, essa também é a forma como experenciamos a vida, ou seja, de maneira particular.

Para compreendermos a importância da luta por visibilidade lésbica, voltemos novamente aos anos de 1970, desta vez na França. Nesta década, a feminista e lésbica Monique Wittig revolucionava a teoria feminista ao afirmar que a heterossexualidade não é uma mera prática sexual, ou uma orientação sexual apenas, mas um regime político obrigatório. Segundo a autora, a criação e naturalização de dois sexos com características e funções distintas – homens e mulheres – fundam a sociedade enquanto heterossexual. Para garantir um bom funcionamento, a obrigatoriedade da heterossexualidade necessita aparentar naturalidade, o que implica transformar a lesbianidade (e também, claro, a homossexualidade masculina, a bissexualidade e a existência de pessoas transgênero) em pecado, doença, crime ou desvio, invisibilizando sua existência pacífica durante toda a História.

A obrigação da heterossexualidade, exercida pelo controle da sexualidade feminina, é um dos pilares do patriarcado. Este processo não se dá pacificamente, já que não é natural, mas é exercido por (1) leis e costumes; (2) controle da consciência; (3) limitação dos recursos, conhecimentos e mobilidade, reduzindo a autonomia das mulheres; (4) violência física e, claro, pela (5) invisibilização da lesbianidade, elementos que se relacionam dialeticamente. Com seus mecanismos e ferramentas, o heterossexismo – ou regime político heterossexual, nas palavras de Wittig – dificulta desde a descoberta da lesbianidade até a sua vivência plena. A heterossexualidade é não apenas obrigatória como enfiada goela abaixo, compulsoriamente.

Um exemplo da obrigação heterossexual e a consequente punição dada à lesbianidade são os dados trazidos pelo dossiê “Lesbocídio no Brasil: as histórias que ninguém conta”, projeto que mapeia o assassinato de lésbicas por motivo de ódio, repulsa e discriminação. Entre 2014 e 2017 houve um aumento de 150% dos lesbocídios, registrando em 2017 mais de uma morte por semana. A maioria dos casos foi entre jovens de 20 a 24 anos e a chance do assassinato ocorrer no interior é duas vezes maior que nas capitais do país. 66% das vítimas eram lésbicas não-feminilizadas e apenas 12% das mortes ocorreram em espaços públicos. Para Milena Peres, pesquisadora do dossiê, “a invisibilidade lésbica dentro da sociedade dificulta o desenvolvimento deste mapeamento. A pesquisa busca criar um espaço de denúncia”.

Outro exemplo do controle da sexualidade feminina, objetificada para consumo masculino, é a hipersexualização das relações entre mulheres. Pesquisando por “lésbicas” no Google, quarenta resultados de conteúdo pornográfico antecedem a primeira notícia. Entretanto, o mesmo não acontece com a busca por “gays”. Nós, mulheres lésbicas, somos extremamente visíveis como seres sexuais fetichizados, mas invisibilizadas como seres sociais.

A visibilidade lésbica é, então, necessária para a nossa existência enquanto mulheres lésbicas (e não heterossexuais). Só conseguimos disputar a política se antes existirmos politicamente. É a partir da luta por visibilidade que demandamos políticas públicas para violências específicas que sofremos, como lesbocídio e estupro corretivo; que denunciamos a inexistência de preservativos para a relação sexual entre mulheres e o despreparo das/os profissionais no atendimento de mulheres não heterossexuais. É a partir da luta por visibilidade lésbica, também, que problematizamos a escassez de produção teórica acerca da lesbianidade nos estudos de gênero e também fora dele.

Que visibilidade queremos?

Agora que conhecemos a história da luta por visibilidade lésbica e sua relevância, podemos refletir sobre que visibilidade queremos.  Onde pretendemos chegar quando pautamos a visibilidade lésbica? Qual é o nosso horizonte político? Que visibilidade nos contempla?

Como vimos no início deste texto, foi apenas em 1979 que a lesbianidade foi pautada sem teor discriminatório em um veículo de comunicação. Atualmente, a representação das mulheres lésbicas de forma positiva e não fetichizada aumentou e vem ganhando visibilidade fora de nossos guetos, o que é de grande importância para o nosso bem viver. No entanto, se consideramos a visibilidade lésbica uma ferramenta política para a transformação radical do mundo e não um fim em si mesmo, não devemos nos contentar com uma representatividade desacompanhada de uma crítica estrutural e que visibilize apenas as lésbicas brancas e de classes favorecidas.

Um exemplo do esvaziamento político da lesbianidade é a edição deste mês da revista Marie Claire, que estampou sua capa com o casal de mulheres Nanda Costa e Lan Lanh, seguida da manchete “Amor é amor! A percussionista Lan Lanh e a atriz Nanda Costa falam sobre sua paixão pela primeira vez. Amor é amor? O casal mantém um relacionamento há cinco anos, mas apenas o publicizou no último dia das/os namoradas/os, dois meses antes da reportagem. Até então, a atriz Nanda Costa, de 31 anos, nunca havia se manifestado sobre sua sexualidade. Amor é amor? Em janeiro deste ano, Ana Mickaelly foi assassinada a facadas pelo sogro ao pedir a namorada em casamento, no Distrito Federal. Amor é amor?

Além de esvaziar politicamente o debate da lesbianidade, fazendo parecer que mulheres hétero e homossexuais podem amar da mesma forma, a reportagem nos dá margem para refletir sobre o apelo que é dado ao amor como forma de legitimar a lesbianidade. A justificativa com base no amor para a aceitação da homossexualidade, tanto feminina quanto masculina, na verdade tem muito mais a ver com a incorporação desta ao modelo heterossexista de família monogâmica do que aceitação de fato. Assim, pergunto: o que podemos falar sobre lesbianidade? Conteúdo superficial e higienizado? Quando podemos falar? Apenas em agosto, em alusão ao dia da visibilidade lésbica? Como vamos falar? Em terceira pessoa?

É preciso, entretanto, falar apesar de todas as consequências, sobretudo em meio ao avanço do conservadorismo que vivemos. Como nos ensina Audre Lorde, feminista negra e lésbica, “essa visibilidade que nos faz tão vulneráveis, é também a fonte de nossa maior fortaleza. Porque a máquina vai tratar de nos triturar de qualquer maneira, tenhamos falado ou não. (…) Podemos ficar quietas em nossos cantos seguros, caladas como se engarrafadas, e ainda assim seguiremos tendo medo”.

Luana Farias de Oliveira
fdoluana@gmail.com

Bacharela em Serviço Social pela UFPB

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM) da UFBA